sábado, 6 de dezembro de 2014

Hoje é dia de João do Vale, poeta do Povo

JOÃO DO VALE - Poeta do povo
por Angela Pinho

Semi-analfabeto, cantou a beleza e o sofrimento de sua gente. Maranhense universal, faz parte da santíssima trindade da música nordestina.

Entre suas composições a mais famosa é Carcará
JOÃO DO VALE. Poeta e compositor - Foto AlmanaqueBrasil
O ano é 1953. Na construção em Ipanema, ressoa canção na voz de Marlene: Estrela miúda / Que alumeia o mar / Alumeia terra e mar / Pra meu bem vir me buscar. João vira para o colega: “Sabe quem é o autor? Disfarça e olha aqui: eu.”
“Conversa, neguinho, tá delirando, rapaz? Bota massa, sô.”
O desacreditado rapaz de 19 anos figuraria, ao lado de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, na santíssima trindade da música nordestina.

TIJOLO POR TIJOLO
“Meu nome é João Batista do Vale. Pobre, no Maranhão, ou é Batista ou é Ribamar. Eu saí Batista.” Assim se apresentava. Nasceu em 1934 em Pedreiras, de um casal de agricultores; quinto de oito filhos; só três sobreviveram. Sorridente, pernas tortas, dançava e fazia versos para anunciar os doces da mãe na rua.
Aos 12 anos, muda com a família para São Luís. Vende frutas e compõe para o bumba-meu-boi. Aos 14, foge com um circo para Teresina, Piauí. Como ajudante de caminhão, conhece ritmos de todo o Nordeste. Vai parar em Salvador, depois Teófilo Otoni, Minas: quer ganhar algum no garimpo. Não acha nada, mas chega ao Rio, seu sonho.
Trabalha em construção. Mora nas obras e, à noite, procura artistas para cantar suas músicas. Em 1953, quando Marlene grava Estrela Miúda, deixa de ser pedreiro. Faz duradoura parceria com Luiz Vieira.
No começo dos anos 1960, vai cantar no Zicartola, bar de Cartola e sua mulher, Dona Zica. Lá, em 1964, o convidam a participar do musical Opinião. Marco da luta contra a ditadura, o espetáculo projeta João para o País. Em 1965, Bethânia, substituta de Nara Leão no show, faz de Carcará não só a música mais famosa do compositor como hino contra o regime: Carcará pega, mata e come.

“O NEGÓCIO NÃO É BEM EU”
1942. João está no terceiro ano do primário. Chega a Pedreiras novo coletor de impostos, com o filho. A escola não tem vaga. Expulsam João para dar lugar ao garoto. “Botaram rua com meu nome, me homenageiam, só pra desmanchar o que fizeram. Mas nem Deus querendo esqueço”, diria, anos depois.
João, que sabia ler, não aprendeu a escrever. Mas a experiência lhe daria aguda percepção da realidade, como mostra em Minha HistóriaEnquanto eu ia vender doce / Meus colegas iam estudar / [...] Mas o negócio não é bem eu / É Mané, Pedro e Romão / Que também foi meus colegas / E ficaram no sertão / Não puderam estudar / E nem sabem fazer baião.
Não gostava de chamar suas canções de “música de protesto”. Mas a crítica social é inegável. Sina de CabocloEu sou um pobre caboclo, ganho a vida na enxada / O que eu colho é dividido com quem não plantou nada / [...] Deus até tá ajudando, tá chovendo no sertão / Mas plantar pra dividir, num faço mais isso não.

MUITA GENTE DESCONHECE
No final dos anos 1960, a censura aperta. João volta a Pedreiras. Em 1978, no Rio, organiza o Forró Forrado, ponto de encontro de nordestinos que abriga shows seus e de amigos ilustres - de Chico Buarque à argentina Mercedes Sosa. É Chico, aliás, o responsável pela gravação do segundo lp de João, em 1981, 16 anos depois do primeiro. Muitos não sabiam que era João o autor de sucessos cantados por outros, como O Canto da EmaPisa na FulôNa Asa do Vento: A ciência da abêia, da aranha e a minha / Muita gente desconhece.
Em 1986, sofre derrame cerebral. Deixa a casa simples em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, e volta para Pedreiras. Em 6 de dezembro de 1996, depois de novo derrame, morre, aos 62 anos, o aclamado “poeta do povo”.

SAIBA MAIS 
Pisa na Fulô Mas Não Maltrata o Carcará
, de Márcio Pachoal (Lumiar, 2000).

Fonte: Almanaque Brasil - O Almanaque Brasil está sob uma licença Creative Commons

Carcará - Maria Bethânia interpreta canção de João do Vale

Maria Bethânia cantando a música Carcará na sua estréia nos palcos, em 1965, quando ainda tinha apenas 17 anos de idade. Esse número fez parte do show Opinião, que foi um espetáculo histórico de protesto, do qual também participaram Zé Keti e João do Vale. A cantora Nara Leão fez parte da primeira versão do espetáculo, mas teve que se ausentar e indicou Bethânia pra lhe substituir, quando a baiana ainda era uma desconhecida. No final da música, Bethânia emenda com um texto sobre a migração do povo nordestino para os grandes centros urbanos brasileiros. (fonte: Youtube)

Carcará
Composição: João do Vale/José Cândido

Carcará
Lá no sertão
É um bicho que avoa que nem avião
É um pássaro malvado
Tem o bico volteado que nem gavião
Carcará
Quando vê roça queimada
Sai voando, cantando,
Carcará
Vai fazer sua caçada
Carcará come inté cobra queimada
Quando chega o tempo da invernada
O sertão não tem mais roça queimada
Carcará mesmo assim num passa fome
Os burrego que nasce na baixada
Carcará
Pega, mata e come
Carcará
Num vai morrer de fome
Carcará
Mais coragem do que home
Carcará
Pega, mata e come
Carcará é malvado, é valentão
É a águia de lá do meu sertão
Os burrego novinho num pode andá
Ele puxa o umbigo inté matá
Carcará
Pega, mata e come
Carcará

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