quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Poemas de Manoel de Barros

Poemas de Manoel de Barros do livro Manoel de Barros - Poesia Completa.


ODE VINGATIVA

Ela me encontrará pacífico, desvendável
Vendável, venal e de automóvel.
Ela me encontrará grave, sem mistérios, duro
Sério, claro como o sol sobre o muro.

Ela me encontrará bruto, burguês, imoral,
Capaz de defendê-la, de ofendê-la e perdoá-la;
Capaz de morrer por ela (ou então de matá-la)
Sem deixar bilhete literário no jornal.

Ela me encontrará sadio, apolítico, antiapocalíptico
Anticristão e, talvez, campeão de xadrez.
Ela me encontrará forte, primitivo, animal
Como planta, cavalo, como água mineral.

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O MORTO

I

A chuva lavou
As pessoas do morto
E lavou o morto
Com a sua fisionomia
De torto
E com seus pés de morto
Que arrastava um rio seco
E suas mãos de morto
Onde se dependurou
Insistente, um gesto oco.
À noite enterrou-se
O homem
Na raiz de um muro
Com sua roupa no corpo.
E a chuva regou no horto
Desse vitorioso
Homem morto
Enormes violetas
E uns caramujos férteis…

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O MORTO

II

Veja esse morto como esgotou um por um seus segredos.
Sentado como um doutor
Veja que respeito nutre pelo silêncio…
Que morto!
Um piano dormindo no fundo de um poço
Não é mais cômodo do que um homem morto num porto.
Veja que comodidade.
Ele não usará seus dedos secos nunca mais para pegar em
moças…
Que morto!

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ZONA HERMÉTICA

De repente, intrometem-se uns nacos de sonhos;
Uma remembrança de mil novecentos e onze;
Um rosto de moça cuspido no capim de borco;
Um cheiro de magnólias secas. O poeta
Procura compor esse inconsútil jorro;
Arrumá-lo num poema; e o faz. E ao cabo
Reluz com a sua obra. Que aconteceu? Isto:
O homem não se desvendou, nem foi atingido:
Na zona onde repousa em limos
Aquele rosto cuspido e aquele
Seco perfume de magnólias,
Fez-se um silêncio branco… E aquele
Que não morou nunca em seus próprios abismos
Nem andou em promiscuidade com os seus fantasmas
Não foi marcado. Não será marcado. Nunca será exposto
Às fraquezas, ao desalento, ao amor, ao poema.

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ENCONTRO DE PEDRO COM O NOJO

A rosa reteve Pedro. E a mão reteve a música como
paisagem de água na retina.
Era noite no bairro do Flamengo. As pensões de estudantes
dormiam nas transversais.
Pedro mergulhado em trevas, no quarto, pensa no
rouxinol e na bomba atômica.
As coisas mais importantes lhe aconteciam no escuro,
como a surpresa de uma flor desabrochada à noite.
Pedro recebe uma brisa no rosto e se olha, inundado de
solidão. Se chorasse poderia dormir depois. Prefere andar.
Pedro carrega a beleza como um prédio em ruínas. Desce
as escadas e ganha a rua.
Pedro anda tendo temores esquisitos. Por exemplo: que
desapareçam os fracos da face da terra e restem apenas
pessoas blindadas de sol.
Teme que desapareçam as criaturas roladas dos abismos de
Deus, com seus andrajos, com as suas cicatrizes.
Pensou em plantar uma árvore. Em pensamento viu-se
desmembrado, seu corpo espalhado nos pedaços de um
espelho.
Entrou numa pequena rua. Viu pássaros roubando suicidas.
Meninos carregando escadas. Respirou um odor de mofo e
rosas velhas.
Estava bem longe agora de seu quarto pobre. Seu paletó
estaria dependurado no cabide. Esmeralda, a mulata, se
surpreenderia de não encontrá-lo àquela hora.
Pedro começa a esfregar os olhos para espantar Esmeralda;
mas ela vinha de flancos nua rolar na aresta dos desejos.
Vinha de chapéu de breu e sonos… Distraiu-se afinal vendo
os azulejos roídos pelos peixes do Ministério da Educação.
Pedro ficou parado. Depois entrou no Frege, atraído por
um samba. Viu lá dentro um negro sentado com uma
clarineta fincada no rosto!
O negro atropelava as pessoas com as suas queixas que
escorriam pelas ruas como água. Pedro foi saqueado pela
angústia. Cuspiu e retirou-se.
No largo, entre pássaros, acalmou-se. Uma funda sensação
de pertencer às coisas mudas, como a folha que pertence à
árvore, invadiu-o.
Doce pélago! Pedro saiu leve para junto do mar. Coral e flor
de caos ia colher — entre baixios sangrentos.
Seu era o mundo. Dormiu entre pedras. O dia amanheceu
em suas mãos.
Pedro entregou-se ao dia, como ao seu musgo se entrega o
verde.
Pureza de ruínas nos olhos de Pedro! Estava sujo e coberto
de lírios.
Às doze horas Pedro regressou ao quarto. Debaixo da
escada um homem dormia como um peixe: a boca
descampada úmida e serena. Subiu.
Pedro deitou-se, pensando… A inércia me devora, enraízase
em meu corpo, como líquenes na pedra — se fico deitado.
Sentia fluir de seus ossos a inércia e brotar de seus dedos,
como cardos, o nojo.
Preciso caminhar. Pedro se levanta e vai à janela. Lá fora,
bem rente ao muro encardido, uma pereira florida…
Pedro quer nascer do chão. Pedro acha que precisa florir até
a altura de uma janela. Oferecer-se ao luar… e…
Ó propício frio das sombras! Entra Esmeralda autêntica
com sol nas carnes e nas palavras. Pedro retorce, quebra
Esmeralda nos braços, baba-a toda e a engole.
Agora Pedro vai jiboiar nas ruas de novo. Pedro é louco.
Arrasta-se pelos becos com a sua porcaria na alma.
Engole sua anulação como água. O nojo lhe cresce como
um braço podre, mirrado. Um braço podre saindo das
costas…
Pedro engole a maçã do caos. Vai trôpego deitar-se nas
pedras. Esmeralda tritura-o agora.
Tudo que há de noturno está entranhado nas roupas de
Pedro. Bebe goles de treva. Liberdade que se evola de ti, no
escuro, Pedro! Não percebe.
Cogumelos brotavam de seu ventre, e ocasos. Calangos
vinham lamber os seus pés e mascar suas roupas os bois.
Pedro se aproximara das coisas. Para dormir com elas.
Pedro deitou-se entre objetos. A terra comia seu abdômen.
A terra cheia de poros, fermentada de raízes, rosas podres,
bichos corrompidos, penas de pássaros, folhas e pedras — o
atraíam.
Pedro era um barro ofegante. Como um fruto peco, deixou
sua boca no chão, imóvel, aberta.
Tinha de recostá-la na terra e haurir, das raízes
intumescidas, seiva.
Pedro sabia: todo aquele que não bebe água no solo, secará
como cana cortada no pé. Ficou deitado.
Pedro estava só. Deixava-se completamente às coisas,
recebendo suas emanações físicas.
Pedro se encostava nas coisas, afagava-as como se elas
fossem criaturas íntimas. Pedro era reconstruído.
Agora Pedro ressurge. Vem botando o pescoço para o sol.
Despegando-se da escuridão, pesadamente, como um bêbado
gordo, e aos pedaços, estraçalhado…
Pedro vem tateando na luz, subindo nas bordas do poço,
soltando de sua casca o moliço… Deixa pedaços dele no
escuro.
Pedro entra em seu quarto. Está perfeito e pobre.
Poderemos sequer fazer uma ideia de que resultará do
encontro de um homem com o nojo?
Agora Pedro está dormindo.

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