segunda-feira, 17 de março de 2008

A Poesia Concreta, segundo Augusto de Campos

Publicado originalmente em Forum, órgão oficial do Centro Acadêmico 22 de Agosto, da Faculdade Paulista de Direito, ano I, número III, outubro de 1955.

poesia concreta
Augusto de Campos

Em sincronização com a terminologia adotada pelas artes visuais e, até certo ponto, pela música de vanguarda (concretismo, música concreta), diria eu que há uma poesia concreta. Concreta no sen-tido em que, postas de lado as pretensões figurativas da expressão (o que não quer dizer posto à margem o significado), as palavras nessa poesia atuam como objetos autônomos. Se, no entender de Sartre, a poesia se distingue da prosa pelo fato de que para essa as palavras são signos, enquanto para aquela são coisas, aqui essa distinção de ordem genérica se transporta a um estágio mais agudo e literal, eis que os poemas concretos caracterizar-se-iam por uma estruturação ótico-sonora irreversível e funcional e, por assim dizer, geradora da idéia, criando uma entidade todo-dinâmica, "verbivo-covisual" – é o termo de Joyce – de palavras dúcteis, moldáveis, amalgamáveis, à disposição do poema.

Como processo consciente, pode-se dizer que tudo começou com a publicação de Un Coup de Dés (1897), o "poema-planta" de Mallarmé, a organização do pensamento em "subdivisões prismáticas da idéia" e a espacialização visual do poema sobre a página. Com James Joyce, o autor dos romances Ulysses (1914-1921) e Finnegans Wake (1922-1939), e sua "técnica de palimpsesto", de narração simultânea através de associações sonoras. Com Ezra Pound e The Cantos, poema épico iniciado por volta de 1917, no qual o poeta trabalha há 40 anos, empregando seu método ideogrâmico, que permite agrupar coerentemente, como um mosaico, fragmentos de realidade díspares. Com E.E. Cummings, que desintegra as palavras para criar, com suas articulações, uma dialética de olho e fôlego, em contato direto com a experiência que inspirou o poema.

No Brasil, o primeiro a sentir esses novos problemas, pelo menos em determinados aspectos, é João Cabral de Melo Neto. Um arquiteto do verso, Cabral constrói seus poemas como que a lances de vidro e cimento. Em Psicologia da Composição, com "Fábula de Anfion" e "Antiode" (1946-1947), atinge a maturidade expressiva, já prenunciada em O Engenheiro.

Flor é a palavra
flor, verso inscrito
no verso, como
manhãs no tempo

diz ele em "Antiode", e nada mais faz do que teoria da poesia concreta.
"O Jogral e a Prostituta Negra" (1949) é outro salto construtivo de vanguarda, dessa vez logrado por um novíssimo, Décio Pignatari. Nesse poema, Pignatari lança mão de uma série de recursos "concretos" de composição: cortes, tmeses, "palavras-cabide" (isto é, montagens de palavras, possibilitando a simultaneidade de sentidos: al(gema negra)cova = alcova, algema, gema negra, negra cova), todos eles convergindo para a temática que é a do poeta torturado pela angústia da expressão. É a dúvida hamletiana aplicada ao poeta e à palavra poética: até que ponto ela exprime ou deixa de exprimir, "vela ou revela"? E eis o poeta, clown-sacerdote a compor de carti-lagens e moluscos a poesia-prostituta negra-hasard que aqui – como o "mudaria o Natal ou mudei eu?" do soneto de Machado de Assis – explode em um único verso: "Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas".

Haroldo de Campos é, por assim dizer, um "concreto" barroco, o que o faz trabalhar de preferência com imagens e metáforas, que dispõe em verdadeiros blocos sonoros. Nos fragmentos de "Ciropédia ou a Educação do Príncipe" (1952), aqui apresentados, merece menção o especial uso das palavras compostas, buscando converter a idéia em ideogramas verbais de som.

o jogral e a prostituta negra
farsa trágica
Décio Pignatari

Onde eras a mulher deitada, depois
dos ofícios da penumbra, agora
és um poema:

Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas.

É à hora carbôni-
ca e o sol em mormaço
entre sonhando e insone.

A legião dos ofendidos demanda
tuas pernas em M,
silenciosa moenda do crepúsculo.

É a hora do rio, o grosso rio que lento flui
flui pelas navalhas das persianas,
rio escuro. Espelhos e ataúdes
em mudo desterro navegam:
Miraste no esquife e morres no espelho.
Morres. Intermorres.
Inter (ataúde e espelho) morres.

Teu lustre em volutas (polvo
barroco sopesando sete
laranjas podres) e teu leito de chumbo
têm as galas do cortejo:

Tudo passa neste rio, menos o rio.

Minérios, flora e cartilagem
acodem com dois moluscos
murchos e cansados,
para que eu te componha, recompondo:

Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas.

(Modelo em repouso. Correm-se as mortalhas das
persianas. Guilhotinas de luz lapidam o teu dorso em
rosa: tens um punho decepado e um seio bebendo
na sombra. Inicias o ciclo dos cristais e já cintilas.)

Tua al(gema negra)cova assim soletrada em câma-
ra lenta, levantas a fronte e propalas:
"Há uma estátua afogada..." (Em câmara lenta! – disse).
"Existe uma está-
tua afogada e um poeta feliz(ardo -o
em louros!). Como os lamento e
como os desconheço!
Choremos por ambos."

Choremos por todos – soluço, e entoandum
litúrgico impropério a duas vozes
compomos um simbólico epicédio AAquela
que deitada era um poema e o não é mais.

Suspenso o fôlego, inicias o grande ciclo
subterrâneo de retorno
às grandes amizades sem memória
e já apodreces:

Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas.

(1949, em O Carrossel, 1950)


ciropédia ou a educação do príncipe (fragmentos)
Haroldo de Campos

You find my words dark. Darkness is in our souls, do you not think?
James Joyce

1
A educação do príncipe em Agedor começa por um cálculo ao coração. Jogam-se os dados, puericultura do acaso, e se procura aquela vértebra cervical de formato de estrela ou as filacteras enroladas no antebraço direito: sinal certo do amor.

Em Agedor, o príncipe é um operário do azul: de suas mãos edifica
– infância – as galas do cristal e doura o andaime das colméias: paz
de câmaras ardentes.

O preceptor – Meisterludi – dá o tema: rigor! As matemáticas: cáries de uma série gelada. Linguamortas: oblivion sagrando a raiz dos árias: ars. Lingua-vivas: amor.

O príncipe, desde criança, é um aluno do instinto. Saúda as antenas dos insetos. Ave! às papilas papoulas e à clorofila – salve! tornassol das espécies sensíveis.

Helianto, doutor solar, sol honorário, o tropismo te ensina a graça das elipses? Ó inferno-afélio do langue heliotropo! Térmitas: dii inferi!

Ele orienta as abelhas. Ele irisa as libélulas. Ele entra o palácio dos corais e suspende os candelabros.

À hora dos deméritos o mestre diz: rigor!

Infância do príncipe: água de que se fartam infinitas crianças.

2
O príncipe aprende a equitação do verbo. As palavras ócio e amor
nada significam em Agedor – pois significam tudo.

Impúbere, ele pensa: a pluma o pajem
As aias – coro de vozes – baixelas de seu banquete

Em Agedor, o tempo – diz-se – camaleão melancólico/distende a
língua e colhe um inseto de bronze.

3
Núpcias paranúpcias pronúpcias.

A educação do príncipe atinge a sua crise noturna.

Congregação de rubis, a puberdade instaura a missa rubra.

Ele admira as grutas, apalpa as volutas cornucópias, contorna o
maralmíscar das sereias.

A geometria plana? – Júpiter tetraedro de quadradas espáduas?

– Drósera rotundifólia, amálgama de sílabas cardeais.

Labilíngüe, ele diz: amor – larva do beijo, ninfa nibelung dum ciclo de legendas.

Meisterludi: rigor!

Cobiça as galáxias-estrelas, doutora-se em lânguidas palavras: licornes libidinosos e glúteas obsidianas. Luz púrpura.

Em Agedor chega-se à idade por uma súbita coloração roxa sob as unhas.
.

(1952, em Noigandres, 2, 1955)


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Publicado originalmente em Forum, órgão oficial do Centro Acadêmico 22 de Agosto, da Faculdade Paulista de Direito, ano I, número III, outubro de 1955. Na publicação, ao lado dos poemas citados, o autor acrescentou (diante da impossibilidade de incluir uma das composições da série "poetamenos", devido ao alto custo da impressão em cores) seção x (final) de seu poema "Ad Augustum per Angusta", preferindo não comentar o próprio trabalho. Não muito depois, três poemas daquela série foram apresentados no espetáculo organizado pelo grupo musical Ars Nova, a quatro vozes e com projeção simultânea dos respectivos slides, no Teatro de Arena de São Paulo, em 21 de novembro e 5 de dezembro de 1955. Na ocasião, e sob o mesmo título, Poesia Concreta, o poeta leu um texto sobre suas criações (cf. revista Código, número 11, Salvador, 1986, onde foi divulgado).


Fonte: PoesiaConcreta

Um comentário:

Vanuza Pantaleão disse...

Essa TURMA BOA DO CONCRETISMO ainda mexe com a nossa cabeça!Beijokas e não deixem de me visitar, comentando, clarooooo, rssss.Vanuza