sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Cultura Periférica

No meio de uma gente tão modesta

Milhares de pessoas reúnem-se todas as semanas nas quebradas, em torno das rodas de samba. Filho da dor, mas pai do prazer, o ritmo é o manto simbólico que anima as comunidades a valorizar o que são, multiplica pertencimentos e sugere ser livre como uma pipa nos céus da perifa

por Eleilson Leite

O Dia Nacional do Samba é comemorado em 2 de dezembro. Por ocasião da data festiva, o gênero ganha muito espaço na imprensa e nas discussões informais. Um tema bastante tratado é o da necessidade da volta à tradição, como se ela tivesse sido esquecida.

Desde a década de 1990, fala-se no “resgate” do chamado samba de raiz. Há uma percepção de que o samba autêntico teria perdido espaço para o pagode comercial, produto midiático que tomou conta da TV e do rádio já na década de 80 e que ainda mantém sua hegemonia, contando inclusive com grupos de jovens brancos de classe média como o Inimigos da HP [1]. Teria o samba se desvirtuado? Haveria razão para “voltar” às raízes?

Talvez não seja o caso de confrontar uma coisa com a outra. Esse pagode meloso que toma conta das rádios é um sub-produto do samba, feito para o consumo de massa, e tem prazo de validade reduzido. Já o samba de terreiro, surgido nas senzalas como samba de roda, jongo, batuque, umbigada e outras expressões, é perene, corre no leito caudaloso da tradição. E a tradição é amiga do tempo: quanto mais velho, mais forte. Esse samba não precisa ser “resgatado”. Ninguém o seqüestrou. Você quer conhecê-lo? Esqueça a mídia. E não precisa ir ao Recôncavo Baiano ou a um charmoso botequim da Lapa, no Rio de Janeiro. Vá a Pirapora do Bom Jesus, município da Região Metropolitana de São Paulo, a 50 quilômetros da Capital, reduto do samba de roda paulista, o samba rural pontuado pela zabumba e o ganzá. O samba da senzala. Pirapora foi imortalizada pelo saudoso Geraldo Filme:

“Eu era menino
Mamãe disse Vamo embora
Você vai ser batizado
No samba de Pirapora.”

Uma identidade muito mais poderosa que as "chamadas" do rádio e da TV

Essa tradição também é cultuada por vários grupos da periferia de São Paulo. Grupos de jovens inclusive, como o Umoja e Panelafro, na Zona Sul. Mas é nas inúmeras rodas de samba existentes no subúrbio paulista que encontramos a vitalidade do samba e seu enorme potencial de mobilização. Somente as 13 rodas de samba catalogadas na Agenda Cultura da Periferia atraem, juntas, cerca de 20 mil pessoas, em suas apresentações. O Samba da Vela, a mais conhecida delas, reúne 250 pessoas toda segunda-feira. O Pagode do Cafofo, da região do Aricanduva (Zona Leste) juntou 3 mil, na apresentação de aniversário realizada em novembro. O Samba da Laje bloqueou, também no seu aniversário, uma avenida na Vila Santa Catarina, onde 5 mil pessoas aglomeraram-se em julho. Atualmente, o Berço do Samba, de São Mateus, tem levado multidões aos shows de lançamento de seu CD, como ocorreu no último dia 15 de novembro, no Sesc Interlagos. E essas quatro rodas de samba, mais o Projeto Nosso Samba, de Osasco e o Samba de Roda, de Pirapora, reuniram-se sábado, 1º de dezembro, na Praça Roosevelt no centro de São Paulo para celebrar antecipadamente o Dia Nacional do Samba, num evento que reuniu cerca de 5 mil pessoas.

Essa gente toda, que se encontra em torno das rodas de samba, comunga entre si um apego à tradição. Sentem-se identificada nessa irmandade. Não está ali por causa de anúncios em rádio e TV. Comparece porque é da comunidade. E este é um traço fundamental para se entender a força das rodas de samba. Os grupos são formados ali, na quebrada, e por meio da música, fortalecem a comunidade da qual são oriundos. As rodas de samba, mais do que qualquer outra manifestação cultural, fortalecem um tecido social comunitário. Isso é muito importante para afirmação das populações que habitam as áreas periféricas das metrópoles. E a comunidade, diferente do movimento social de tipo reivindicatório, afirma-se pelo que tem — não pelo que não tem. Isso lhe confere um sentido de pertencimento que resulta na tradição, na continuidade. E o samba tece o manto simbólico dessas comunidades.

Por isso, meu caro leitor, vá às comunidades. Verás que o samba autêntico não precisa ser “resgatado”. Ele está livre e solto como uma pipa nos céus da periferia.

Mais

Eleilson Leite é colunista do Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique. Edições anteriores da coluna:

A dor e a delícia de ser negro
Dia da Consciência Negra desencadeia, em São Paulo, semana completa de manifestações artísticas. Nosso roteiro destaca parte da programação, que se repete em muitas outras cidades e volta a realçar emergência, diversidade e brilho da cultura periférica

Onde mora a poesia
Invariavelmente realizados em botecos, os saraus da periferia são despojados de requintes. Mas são muito rigorosos quanto aos rituais de pertencimento e ao acolhimento. Enganam-se aqueles que vêem esses encontros como algo furtivo e desprovido de rigores

O biscoito fino das quebradas
Semana de Arte Moderna da Periferia começa dia 4/11, em São Paulo. Programa desmente estereótipos que reduzem favela a violência, e revela produção cultural refinada, não-panfletária, capaz questionar a injustiça com a arma aguda da criação

A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza
Vem aí Semana de Arte Moderna da Periferia. Iniciativa recupera radicalidade de 1922 e da Tropicália, mas afirma, além disso, Brasil que já não se espelha nas elites, nem aceita ser subalterno a elas. Diplô abre coluna quinzenal sobre cultura periférica


[1] O nome é referência a uma calculadora muito utilizada por engenheiros, fabricada pela mesma empresa (Hewlett Packard) que produz impressoras

Fonte: LeMondeDiplomatique

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