quinta-feira, 26 de julho de 2007

Canários fugidos da gaiola podem voltar

Os passarinhos fujões.
Airton Monte

Escrevo e já é domingo. Hoje, não bati o ponto na tradicional macarronada com galinha à cabidela do vetusto Solar dos Monte. Hoje, anseio apenas e indispensavelmente um cantinho sossegado pra ler um livro, ouvir um disco, fazer um poema, escrever uma carta besta de amor, um bilhete de suicida.

Ou, simplesmente, postar-me diante da janela escancarada e desfrutar da paisagem quando me bate esse cansaço de nada, esse tédio absoluto de tudo, essa benevolente preguiça, esse estar no mundo despido de compromissos urgentes.

A verdade verdadeira é que sou um domingueiro típico, suburbano, um domingueiro de anedota. O máximo esforço a que me permito é andar até a cozinha pegar uma cerveja no congelador. Isso, se não tiver quem vá.

Domingo, nem o velho e grande gato gordo, que habita o telhado em frente, persegue inutilmente os pombos ilusórios pousados nos beirais. Sim, sou igual ao velho e grande gato gordo, folgado, macunaímico, lagarteando sob o sol.

Aliás, um felino muito mais sábio do que muitos bípedes pensantes.

Domingo é o dia mais apropriado pra se ler poesia. Afinal, poesia é o pão do espírito, se bem que certos poetastros nos fazem comer o pão que o diabo amassou.

Não é o caso desses versos que me emocionam profundamente sempre que os leio, do poeta Soares Feitosa: "Abram-se as janelas, que aqueles canários fugidos da gaiola podem voltar". Por isso, não crio canários e odeio todas as gaiolas, a não ser a do meu peito onde bate asas meu coração eivado de um romantismo incurável e renitente.

Canários são palavras, gestos perdidos na distância, adeuses esquecidos na janela de um avião, o odor inesquecível de uma mulher depois que a gente faz amor.

Aos domingos, escancaro todas as janelas da casa e da alma. Pássaros fujões podem voltar em busca de ninho. Quem sabe uma palavra, frase, ponto final de um poema, um conto, uma canção, uma crônica.

Sim, manter perenemente as janelas abertas, porque os poetas sabem que os passarinhos fujões quase sempre voltam ao local do crime, pombos-correio do inesperado.


Moça com Flor na Boca - Crônicas escolhidas 29


Fonte: JornaldePoesia

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