segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

Rap Nacional Cada Vez Mais Brasileiro

Cultura
Menos EUA. Mais Brasil
por Pedro Alexandre Sanches

Uma nova safra do hip-hop abre-se para o samba e para a canção dita “cafona”

O rap está descobrindo o Brasil. Quase 20 anos após o advento dos Racionais MC’s, a temporada mais recente de lançamentos de discos do gênero aponta para uma marcante mudança de comportamento entre os artistas de hip-hop: as bases e os samplers (amostras musicais incluídas dentro dos raps) de temas norte-americanos vão cedendo espaço às referências de música brasileira, que, pela primeira vez, se multiplicam de modo a se aproximar da hegemonia.

O segundo dado de impacto diz respeito a qual é esse Brasil que está sendo descoberto pelos rappers verde-amarelos. A dita MPB, aquela que ao longo das últimas décadas foi se confinando a nichos elitizados governados por uns poucos medalhões, segue encontrando pouca ressonância na abundante leva nova que inclui nomes (às vezes inusitados) como Ca.Ge.Be, GOG, A Família, SNJ, Criolo Doido, Z’África Brasil e Negredo, entre tantos outros.

O rap se reconcilia
com a música brasileira, mas privilegiando seus setores mais marginais, notadamente o samba “de raiz”, os ritmos nordestinos tradicionais e, mais ainda, a música comumente chamada de “cafona” ou “brega”. Entre os samplers escolhidos para dar bases musicais às rimas, referências constantes são Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Roberto Carlos, Celly Campello, Altemar Dutra, Paulinho da Viola, Lindomar Castilho, Zé Ramalho, Paulo Diniz, Zeca Pagodinho, Amado Batista e muitos outros.

Muros altos de preconceito e medo tiveram de ser demolidos para que o gueto do rap passasse a ensaiar a construção de pontes de ligação com o samba ou com a canção não elitizada. A abordagem é ainda hoje ressabiada: muitos artistas começam a conversa creditando a aproximação ao desejo de homenagear os gostos musicais de mães e pais.

É o que demonstra César Sotaque, do grupo Ca.Ge.Be (abreviação de Cada Gênio do Beco), formado por quatro rapazes e uma menina da periferia norte de São Paulo, que estréia com o surpreendente Lado Beco (editado pelo selo Equilíbrio, de KL Jay, um dos Racionais). César explica, levemente constrangido, qual é a base do impactante rap Missão Comprida: “O sampler é de Barros de Alencar. Faz parte da minha infância, minha mãe sempre ouviu muito rádio AM. Não digo que gosto, mas criei um carinho com música brega, jovem guarda. Queremos ter nossa identidade, que é brasileira. O rap tem de assumir a cara nacional. Mais de 80% do CD é de sampler brasileiro, queríamos que fosse tudo”.

Algo parecido diz Gato Preto, do grupo paulista A Família, que reúne integrantes da capital e do interior e estreou em 2006 com o CD Cantando com a Alma: “É difícil os mais jovens conhecerem Altemar Dutra, Bartô Galeno, Paulo Sérgio, mas esse é o pessoal da nossa infância. Era o que nossos pais ouviam em casa, minha mãe cozinhando, com o radinho de pilha ali tocando, o cigarro de palha na boca”.

Baião, coco e embolada também fluem por essas árvores genealógicas, como ilustra Gaspar, do grupo Z’África Brasil, que apresentou há pouco seu segundo álbum, o denso Tem Cor Age, em cujas rimas e melodias são onipresentes Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, Zumbi e Lampião: “A influência nordestina vem da minha família. Meu pai é sanfoneiro do Rio Grande do Norte, depois a família toda migrou para o Ceará, ele está em São Paulo há 40 anos. Antes, o embolador ia para a Praça da Sé com um pandeiro, hoje a gente vai com dois microfones e um DJ. É tudo o mesmo som do canto falado”.

O vínculo materno reaparece na fala de Bastardo, do inspirado e já veterano grupo SNJ (Somos Nós a Justiça). No 100% independente A Esperança É o Alimento da Alma, a banda se abre, pela primeira vez, à citação de Tim Maia e a um sampler de Se Você Pensa, de Roberto Carlos. “O sampler é uma homenagem à minha mãe. Mas ela não gosta, fala que eu estraguei a música dele”, brinca. “É um jeito de a gente conseguir convencer uma pessoa de 40 anos para cima, que gosta de Roberto Carlos e Rita Lee, a escutar rap.”

Vem de Bastardo uma indicação de que sons nativos não chegam ao rap apenas como homenagem a pais e mães: “Sou ‘fãnzão’ de Roberto Carlos. O que eu quero é mostrar sons que curto e não têm nada a ver com rap, mas podem ser usados de um jeito que fique com a nossa cara”.

O que soa como novidade maior é um discurso inédito que começa a reconhecer que há vínculos evolutivos entre a música brasileira e o filhote rebelde hip-hop, já que não é de hoje que rappers se nutrem, sem alarde, dessas fontes (é bom lembrar que Jorge Ben e Tim Maia estiveram desde os primórdios no DNA dos Racionais). Um dos pontos de virada, como vários admitem, foi o esboço de aproximação de nomes de certa visibilidade, como Rappin’ Hood, Marcelo D2 e Xis, com o samba mais consistente e a canção nacional tradicional.

Mas, mais que o carioca D2 e os paulistas Rappin’ Hood e Xis, o desbravador louvado pela maioria dos novos artistas chama-se GOG (codinome de Genival Oliveira Gonçalves). É de Brasília e se movimenta com desenvoltura (embora sempre à margem da mídia) no rap paulista da capital e do interior. No novo CD, Aviso às Gerações..., ele sampleia da black music nacional de Cassiano ao romantismo “cafona” da jovem-guardista Lilian (Sou Rebelde, de 1979, é a base de Sonho Real, um rap sobre o MST).

Pois GOG se aventura por essas praias há tempos. O excelente Tarja Preta, de 2004, apostava na diversidade da música brasileira, liquidificando referências díspares como Elis Regina, Jorge Ben, Wanderléa, Paulinho da Viola, Gilberto Gil, Raul Seixas, Vanusa, Toquinho & Vinicius de Moraes, Toni Tornado, Legião Urbana... O romântico Paulo Sérgio, que iniciou carreira em 1968 como êmulo do “rei do iê-iê-iê” Roberto Carlos e adquiriu contornos de mito popular ao morrer precocemente em 1981, é a redescoberta de GOG que vem sendo ecoada por muitos dos novos grupos. O pernambucano Lenine, outro dos citados por ele em Tarja Preta, foi o primeiro a topar pavimentar a ponte também de cá para lá: em retribuição, convidou o rapper para participar de seu acústico na MTV.

Esse tipo de diversidade também é mote central do paulistano do Grajaú Criolo Doido, que apresenta a estréia-solo Ainda Há Tempo após 18 anos trabalhando com ação social comunitária, rap e circo. Ele cita e sampleia Celly Campello, Baby Consuelo, o samba culto Maior É Deus (de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro), o mexicano Trini Lopez e, até, temas infantis de Walt Disney para Alice no País das Maravilhas e Os Três Porquinhos. “Uso Disney por ironia. Alice fala deste meu país maravilhoso e tão feliz, cadê esse país?”

Os artistas são unânimes em creditar parte da distância antes guardada ao medo da repressão pelos artistas sampleados. De fato, as colagens são feitas à base da transgressão, sem pedir autorização. O medo estaria diminuindo? “Eu não represento nada para a Disney, ainda não represento nada nem para o rap”, provoca Criolo Doido. “Não represento perigo para a Disney. Até queria que me processassem e tirassem o disco de circulação, quem sabe aí eu chamava a atenção”, ironiza.

Na faixa Voz e Violão,
Criolo Doido explicita outro elemento crucial de diferenciação deste novo momento: o rap tenta, pouco a pouco, se libertar do rótulo de antimusical, aproximando-se também da melodia e de instrumentos tradicionais. Criolo Doido faz uma alegoria para justificar o rompimento de mais esse dogma: “O rap é uma religião fortíssima. Às vezes, a gente tem de ser duro para conquistar o respeito das pessoas, para só depois poder abrir os ouvidos e o coração”.

“É um crescente”, concorda Bastardo, do SNJ, que só no novo CD começou a usar violões, teclados e baixo. “Por todos os lugares do Brasil há grupos que estão não mudando de estilo, mas se encaixando em outros lados da música, na vontade de ser feliz, de progredir”, afirma, expondo o esforço atual do rap em se expandir além dos preceitos de protesto negativista de suas origens.

Isso significaria uma capitulação às críticas renitentes quanto ao “mau humor” desse gênero musical? Mais ou menos. É fato que uma vertente industrial algo suavizada tenta neste exato instante se impor, a partir dos discos das quatro protagonistas do filme Antônia, Negra Li, Cindy, Quelynah e Leilah Moreno. A ala feminina do hip-hop galga o pioneirismo de conquistar seu quinhão de expressão, às vezes fundadas demais no modelo de rhythm’n’blues mercadológico à moda norte-americana.

Num outro pólo, há artistas agressivos e sempre ignorados pela mídia, como Dexter (que lançou de trás das grades o forte Exilado Sim, Preso Não!) e o grupo Facção Central (cujo recente O Espetáculo do Circo dos Horrores, se alterna por temas como MST, guerrilhas, crítica política, situação carcerária etc.). No meio-termo, a politização extrema também rege o trabalho de grupos que procuram distender o rap, como GOG, Z’África Brasil, A Família, Ca.Ge.Be, Inquérito, Face da Morte etc.

Se a grande indústria multinacional se fascina diante das meninas de Antônia (três delas estão sob contrato da Universal), o rap de letras contundentes de vários desses grupos encontra guarida na distribuidora Sky Blue, cujo diretor artístico é Mister Sam, tutor nos anos 70 e 80 de Gretchen, a “rainha do bumbum”. “Já é tradição os caras do hip-hop virem aqui lançar seus discos. O cara grava e traz, a gente lança”, simplifica Mister Sam. Pragmática, a Sky Blue participa do processo pavimentando outra ponte outrora improvável: é ela que faz chegarem às lojas de qualquer shopping mauricinho os discursos mais contundentes da atual música brasileira, invariavelmente egressos das periferias.

Há ainda um ponto a comentar, e César Sotaque é o primeiro a citá-lo, falando pelo Ca.Ge.Be. “A maioria de nós terminou o ensino médio. É importante, e o começo de alguma coisa”, diz, contando que o grupo conduz carreiras paralelas de serralheiro, porteiro, babá, operário etc.

A sede de conhecimento parece estar em voga no rap daqui, no interesse pela história da música e do Brasil, pelos instrumentos musicais, pela literatura nacional (caso do grupo Mzuri Sana, que buscou em Machado de Assis a inspiração para sua Ópera Oblíqua). Caso emblemático é o de um dos grupos-revelação do momento, Inquérito, formado em Hortolândia (interior de São Paulo) e vencedor do Prêmio Hutuz (promovido no Rio pela Cufa, de MV Bill) de melhor rap de 2006, por Pais e Filhos.

Três integrantes do Inquérito cursam faculdade, um deles na Unicamp e dois na PUC de Campinas. “Sempre digo que sou um rapper na universidade, e não um universitário no rap, porque a idéia de fazer faculdade veio bem depois da entrada no rap. Aliás, veio muito do rap, de tanto escutar as letras do GOG. Resolvi fazer algo para a sociedade além do rap, pois no rap não dá para fazer tudo. Prestei vestibular dois anos até conseguir. Hoje posso dar aula para a molecada como voluntário em cursinhos comunitários”, sintetiza Renan. E é complementado pelo parceiro Klandestino: “Aprendemos com pessoas de outro nível social, e eles aprendem com a gente. Acredito que a revolução vai ser escrita, e não armada”. São novas facetas do rap, que o Brasil ainda está por descobrir.


Legenda Foto: Iê-iê-iê. O SNJ transgride sampleando Roberto Carlos (Redação Carta Capital)

Fonte: CartaCapital

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